Determinismo e não-linearidade

Quando trabalhamos com complexidade, precisamos cuidar com os conceitos e termos que utilizamos. Isso ocorre com qualquer ciência. A complexidade, porém, é um daqueles casos em que a linguagem é desenvolvida em vários ramos científicos (matemática, física, biologia, economia, sociologia, informática etc.), nos quais os termos recebem um significado técnico relativamente preciso, e sua utilização em outros campos (como no Direito) requer cuidado redobrado.

O efeito borboleta (butterfly effect) ocorre em sistemas que são sensíveis a mudanças nas condições iniciais, de forma que pequenas mudanças nessas condições podem levar a alterações importantes no sistema a médio e longo prazo. É comum relacionar isso a indeterminismo. Porém, alguma espécie de dependência a condições iniciais manifesta-se em sistemas deterministas e lineares.

Em matemática, uma função é determinista quando o mesmo valor de input gera sempre o mesmo output. Assim, sabendo o input, sabe-se o output, que é determinado pela função aplicada ao input. Para cada input há apenas um output. A função f(x) = 3x, por exemplo, é determinista, porque se x = 2, o resultado sempre será 6. Sabendo-se que x = 2, sabe-se que o resultado é 6, e será sempre apenas 6. A função f(x) = 3x, além disso, é linear: sua representação gráfica é uma linha reta.

Reiterar essa função (aplicá-la ao seu resultado) dez vezes, tendo como condição inicial x = 2, leva ao seguinte itinerário:

2 – 6 – 18 – 54 – 162 – 486 – 1458 – 4374 – 13122 – 39366 – 118098

Se alterarmos a condição inicial em 0,1, o itinerário será o seguinte:

2,1 – 6,3 – 18,9 – 56,7 – 170,1 – 510,3 – 1530,9 – 4592,7 – 13778,1 – 41334,3 – 124002,9.

Note que uma alteração de 0,1 na condição inicial, em um sistema linear e determinista, levou a uma alteração de 5904,9 após dez reiterações. O sistema não é caótico nem imprevisível. De alguma forma, depende das condições iniciais, exatamente por ser determinista. Mas não é tecnicamente “sensível” às condições iniciais, se entendermos que essa sensibilidade se caracteriza pela arbitrariedade (não regularidade) da diferença entre o resultado das iterações com uma ou outra condição inicial.

O Direito é um sistema não linear e não determinista, além de eventualmente sensível às condições iniciais. Contudo, falar em não-linearidade ou determinismo em Ciências Sociais implica usar os mesmos termos com significados diversos, ainda que eventualmente semelhantes, o que precisa ser feito com bastante clareza e cuidado.

André Folloni

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Problemas jurídicos simples e complexos

Inspirado no artigo seminal do Warren Weaver, penso que podemos dizer que o Direito apresenta problemas simples e problemas complexos.

Problemas simples são aqueles que envolvem poucas variáveis, e nos quais outras relações podem ser desprezadas. Assim, por exemplo, pelo princípio da legalidade tributária, um tributo será inválido se for instituído por decreto. As variáveis são poucas, e uma ação que questione a validade do tributo terá uma solução simples. É possível, nesse caso, desconsiderar outras relações (se o tributo é justo, se foi criado pelo sujeito competente, se respeita a igualdade etc.). Para problemas simples, metodologias reducionistas podem ter soluções satisfatórias.

Problemas complexos são aqueles que envolvem mais variáveis e cujas relações não podem ser desprezadas. O problema emerge das interações entre os vários aspectos; nesse caso, desconsiderar um ou outro aspecto pode levar à incompreensão do problema. O método redutor analítico, de divisão do problema em partes menores, será inadequado, pois essa divisão eliminará a possibilidade de compreender o problema que emerge das interações. É apenas no nível do Direito enquanto sistema complexo que o problema aparece, e a perda desse nível pelo método reducionista faz com que o problema desapareça da análise sem ser resolvido.

Assim, por exemplo, se a tributação brasileira, em conjunto, estiver impedindo o desenvolvimento nacional, ela fere o artigo 3.°, II, da Constituição. Não é apenas inconveniente sob o ponto de vista econômico, ou injusta sob o ponto de vista social; é também inválida sob o ponto de vista estritamente jurídico. Compreender esse problema jurídico depende, entretanto, de um exame complexo, para além da legislação e chegando aos efeitos que as leis, em conjunto, promovem no meio socioeconômico em que se inserem. Aqui a epistemologia tradicional precisa dar lugar a uma epistemologia complexa, apta a compreender o Direito enquanto sistema complexo, permitindo o desenvolvimento de uma ciência jurídica complexa (complex legal science) e de uma ciência da complexidade jurídica (legal complexity science).

André Folloni

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Epistemologia sistêmica de Pierre Delattre e a Ciência do Direito

Na V Conferência da World Complexity Science Academy, em Budapeste, apresentei um trabalho sobre os possíveis reflexos da epistemologia sistêmica de Pierre Delattre na Ciência do Direito e para a construção de uma teoria da complexidade jurídica.

Clique aqui para ler o resumo expandido.

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Antecipação e modelo

Sistemas complexos adaptativos atuam antecipando o que poderá ocorrer. Seu modo de ação é fundado na lógica “se, então” (if/then). Isso depende de um modelo de mundo pressuposto pelo agente — expressa ou implicitamente, de forma consciente ou não.

No exemplo dos recursos repetitivos, o agente atua prevendo o que poderá acontecer caso esse regime seja adotado: sua trabalho reduzirá (ou “o Tribunal será desafogado). “Se” criarmos esse instituto, “então” haverá menos trabalho desnecessário e mais tempo para o que realmente importa. No modelo de mundo do agente elaborador desse regime, aquela ação teria esse resultado.

No mundo natural, quem melhor antecipa tem mais capacidade de sobrevivência.

Para quem elabora normas, toma decisões, desenvolve estratégias, o desafio está em antecipar da melhor forma possível, considerando as aleatoriedades e as não-linearidades (o fato de que uma ação não tem apenas um efeito, mas insere-se em um sistema complexo de interações interligadas com infinitas possibilidades de adaptação).

André Folloni

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Adaptação

Um sistema é adaptativo quando aprende com a experiência e se modifica continuamente. Estamos trabalhando com algo dinâmico, que é sempre diferente a cada momento.

Esse aprendizado surge a partir das interações dos agentes do sistema, entre si e com o meio.

O direito está a todo momento se modificando para se adaptar. Os modos formais de adaptação são, em regra, a legislação e a jurisprudência, mas outros agentes promovem adaptações com graus inferiores de formalidade: advogados, professores, cidadãos em geral etc.

O surgimento de muitas causas sobre o mesmo problema em cortes superiores levou o sistema a se adaptar, criando, legislativamente, os mecanismos de repercussão geral e de representativos de controvérsia, por exemplo. O aparecimento dos computadores e do recurso copia/cola gerou profusão de recursos que apenas reproduzem petições anteriores, levando a jurisprudência ao princípio da dialeticidade. São exemplos de situações em que os agentes atualizam suas estratégias de lidar com os problemas conforme esses problemas evoluem e aqueles agentes aprendem com a experiência e reagem — bem ou mal — a ela. No caso, a reação ao aumento de complexidade gera ainda mais complexidade (Luhmann).

Esses institutos não são independentes ou isolados do resto do sistema e do ambiente. Ao contrário: vão interagir no sistema e com o ambiente, produzindo novas interações complexas. Como geram complexidade, esses institutos geram novos problemas, que demandarão novas adaptações e assim por diante. Não há um estado ótimo final, ou um equilíbrio perfeito estável na vida do Direito enquanto um CAS: ele segue seu caminho.

Princípio e regras jurídicas podem ser compreendidos como resultado dinâmico de adaptações do sistema jurídico às informações que recebem, emergindo a partir das interações entre os agentes, fruto da complexidade e, ao mesmo tempo, produtores e reprodutores de complexidade.

Fontes do direito são agentes capazes de promover mudanças no sistema.

André Folloni

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Quem está no comando?

Um dos grandes desafios para a compreensão dos complex adaptative systems (CAS) e para a projeção do seu comportamento futuro está na sua falta de líder. Nos CAS é comum a ausência de um comando – ou, ao menos, sua relativa ineficácia. Assim, o controle está disperso (Waldrop, Complexity, p. 145).

As ordenações nas configurações dos CAS geralmente emergem das interações entre seus agentes. Esses agentes competem ou cooperam entre si, e a cada momento essas interações podem ocorrer de novas maneiras. A interação de agentes produz efeitos em todos eles e, também, no sistema de que fazem parte.

Os agentes podem ser vistos em vários níveis. No Direito, por exemplo, normas são agentes; mas também são agentes as leis, os intérpretes, os juízes, os tribunais, as turmas e seções, os professores, a doutrina, os advogados, organizações de professores e pesquisadores (institutos, congressos, universidades), organizações de advogados e de juízes (associações, OAB), os enunciados de jurisprudência, as súmulas, as partes, as testemunhas, as provas… De alguma forma, todos esses agentes estão em interação no tempo e no espaço e sofrem mutações a partir dessas interações, admitindo novas formas, novos conteúdos, novos sentidos, nova força, novo poder, conforme as interações vão ocorrendo.

Isso torna ingrata a tarefa de quem assume o comando. Presidentes em todos os níveis sofrem com a pouca efetividade de suas diretrizes. Afinal, os destinatários dessas diretrizes adaptam-se a elas, mas essa adaptação pode se dar de várias formas, inclusive para agir contra o que foi determinado. A própria diretriz adapta-se, admitindo novas interpretações e novo alcance. E o presidente, então, precisa adaptar-se a essa configuração, o que pode gerar uma nova diretriz e assim por diante. O mesmo ocorre com juízes: suas decisões serão recebidas por agentes adaptativos.

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Compreender a dispersão do controle é fundamental para entender o funcionamento do Direito e, também, para desenvolver estratégias de ação em sistemas complexos adaptativos que dependem das ideias de hierarquia, controle, comando – como o Direito – e precisam trabalhar levando em consideração essas dificuldades.

André Folloni

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Agentes

Um sistema complexo adaptativo (complex adaptative system – CAS) é assim definido porque os elementos que o formam se adaptam às circunstâncias, aprendem com a experiência, modificam suas ações conforme interagem com os outros elementos e com o meio em que o sistema se insere. Chegam, em muitos casos, a considerar o tempo e a desenvolver estratégias de comportamento futuro.

Os elementos com essas qualidades são chamados “agentes”.

Essa categoria pode ser aplicada ao estudo do Direito. Normas podem ser compreendidas como agentes, quando se entende que o seu significado muda a partir dessas interações. Intérpretes, advogados, juízes, tribunais, partes, professores, cidadãos, contribuintes, agentes públicos… todos são agentes.

André Folloni

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Emergências

Um dos temas fundamentais do estudo da complexidade é a “emergência”.

Emergências são qualidades que um sistema apresenta, mas que não estão presentes no nível das partes que o formam. A “liquidez” da água é uma propriedade nova, que emerge da reunião de moléculas formadas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, e que não pode ser compreendida pelas leis que governam os átomos e moléculas. A consciência é uma propriedade que emerge das interações celulares no cérebro. A vida também é uma propriedade emergente.

Há degraus de complexidade e mudanças de nível de explicação: algumas qualidades emergem na organização do átomo; outras, da molécula; outras ainda, do agregado de moléculas.

Existe um vasto campo para aplicação desse conceito no estudo do Direito. Um exemplo, que me ocorre, é a interpretação.

Se uma norma jurídica só pode ser bem interpretada a partir de sua inserção em um sistema de normas, o significado normativo é uma emergência: emerge da interação das normas do sistema. Mas é possível subir o nível de complexidade: emerge, também, da interação entre as normas e o intérprete, entre as normsa e a sociedade na qual se insere, entre as normas e as práticas judiciais quotidianas, e assim por diante. Examinar as propriedades da norma isolada não permite sua interpretação; por isso, o significado normativo é uma emergência.

André Folloni

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Direito, complexidade e reducionismo

É muito comum ouvir falar em “sistema do Direito” ou ler sobre o “sistema jurídico”. Muitos se referem à “complexidade” do sistema jurídico e dizem que o Direito é um sistema complexo.

Normalmente, os termos “sistema” e “complexidade” são usados com seu significado corrente. “Sistema” é utilizado como conjunto de elementos com certa unidade e harmonia estrutural. “Complexo”, no sentido de complicado, intrincado, difícil.

Diante da complexidade do fenômeno jurídico, muitos recomendam um procedimento redutor: deve-se isolar o Direito, estudando apenas as normas jurídicas. Esse isolamento reducionista seria condição necessária para compreender um sistema complexo como o jurídico.

Nas últimas décadas, a partir do estudo dos sistemas complexos, desenvolveu-se a Complexity Science, ciência da complexidade. Um de seus fundamentos básicos é considerar o método redutor inadequado para a compreensão dos sistemas complexos. Tentar isolar um sistema complexo do seu meio para fins de estudo pode ser um grave erro. O isolamento rompe a cadeia de interações e retroações responsável pelas qualidades emergentes do sistema – aquelas propriedades que apenas emergem no todo. Separar é eliminar a emergência e, com isso, perder a qualidade que deveria ser compreendida. Com a perda das relações, não se conhece o significado que cada elemento do sistema só tem em função das suas interações com os outros elementos e com o meio, e que pode se modificar em novas interações.

Enquanto muitos juristas sustentam que, diante da complexidade do sistema jurídico, o método científico deve ser o reducionismo, grande parte dos cientistas de outras áreas afirma o contrário: diante da complexidade de um sistema, o método científico não pode ser o reducionismo! Ao mesmo tempo, porém, não pode ser holista: o holismo embaça a compreensão das especificidades, individualidades e a diversidade das manifestações jurídicas que se multiplicam no tempo e no espaço.

O desafio, portanto, está em compreender o Direito em sua complexidade, para além do reducionismo e do holismo.

André Folloni

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